Carta para Narciso

São Lourenço está sempre inundada nos meus sonhos. Escrevo este texto envolvido pelo dilema de saber que águas são essas que alagam a cidade em meu mundo onírico. Isso dificulta minha tarefa, já que a única referência que tenho é essa São Lourenço dos meus sonhos, que não sei onde fica, cujos segredos e fantasmas desconheço e cujo acesso se dá de maneira involuntária.

Para além das visitas à família, ainda residente na cidade que não é mais a minha, restam para mim imagens, lembranças turvas e incertezas consistentes, que promovem em minha alma certa confusão entre a realidade e a ficção. O passar dos anos criou em mim uma doença irreversível: impossibilidade crônica de avaliar a veracidade dos conteúdos da memória. Por isso, pensar a minha relação com São Lourenço é apenas uma forma de me jogar em um espaço vazio e revisitar uma suposta história e as cenas difusas que dela emergem.

Há um trem colorido na praça. Vejo também um menino destemido brincando de escalar o mundo, só para comprovar que o medo da vida jamais o impedirá de se jogar nela. Nada diminui aquele ímpeto infantil de subir um pouco mais, apenas pelo prazer de saborear uma nova perspectiva para o olhar e para poder contemplar o mundo a partir do espaço vazio e amplo, único detalhe entre ele e o céu azul que assiste a cena, intocável e infinito.

No pátio da igreja, percebo uma estátua com um pássaro pousado nas mãos. Ela está imóvel e em silêncio. Jamais conversou com o menino que está diante dela. Mas ele contempla, absorto, o mistério que se revela no diálogo de pedra: não é preciso esforço para que surjam as asas; elas nascem espontaneamente quando o estado de espírito é favorável e se abre para o acolhimento incondicional de todos os seres. Fato que se confirma, não por acaso, na vida do suposto santo escondido atrás da estátua.

Um pouco mais adiante, o menino esfrega os olhos e tenta decifrar melhor o caminho escondido sob o reflexo do sol a iluminar os paralelepípedos. Eles parecem respirar, pensa o menino, ao verificar que algum mato verdinho surge aqui e ali por todas as ruas e gretas. É a vida irrompendo de modo singular, sem se incomodar com a pressão, a dureza e o peso exercido pelas pedras: só é preciso uma brecha. Esfregando novamente os olhos, o menino ainda irá demorar um tempo para compreender que a vida, ela mesma, é uma brecha: entre o nascer e o morrer.

Agora, o menino sente o cheiro do enxofre curativo, disponível em alguma fonte do Parque das Águas. Ele ainda não sabe que enxofre é o cheiro do inferno, nem mesmo compreende que o caminho do viver é um processo de morrer. Levará um tempo até descobrir que na alma humana existem cadáveres mal-cheirosos. Vindos de outros tempos, eles tornam real o inferno criado e sustentado pela mente. Um dia, o menino vai saber que Jung já havia constatado algo parecido: qualquer árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes tão profundas a ponto de tocar os infernos. Nesse dia, o menino não se incomodará mais com o odor do enxofre.

Mais um tempo, e o menino está à beira do lago, jogando aos peixes famintos migalhas de pão, sobra respeitosa do café oferecido aos hóspedes no pequeno hotel do amado e velho avô que já nem existe mais. Ali, o menino ainda não sabe nada sobre a impermanência, nem sobre o fato de que, na maior parte do tempo, humanos agem como aqueles peixes famintos, desesperados por migalhas de pão, ou de atenção, oferecidas pelo divertimento alheio. Um dia, muito tempo depois, o menino vislumbrará que coisa nenhuma neste mundo pode saciar a alma em definitivo e que ilusão é a palavra usada para definir qualquer crença em contrário. Por sorte, e se tiver méritos, o menino aprenderá, a duras penas, alguma coisa sobre a fome e a metáfora do vazio que ela sugere. O vazio do espaço amplo que nos permite ver com lucidez: jamais pode vir de fora o alimento que só se encontra do lado de dentro.

E prestes a ver um menino, inebriado pela cegueira de sua paixão, atirando-se no lago para se apropriar da imagem de si refletida nas águas, descubro por que São Lourenço sempre aparece inundada nos meus sonhos. O lugar onde entramos na vida deixa de existir no momento em que nascemos. O ponto zero se torna o ponto último. Nossa chegada transforma a terra física em egrégora profunda, espaço amplo de compreensão que dá significado à própria vida.

Às vezes sou capaz de vislumbrar o céu que o menino experimentou no topo do trem colorido. O céu sob o qual ele entrou nesse mundo e sob o qual irá deixá-lo, sempre partindo para outras viagens e outras vidas, metafóricas ou literais. O menino irá sempre tomar para si esse minúsculo ponto de luz encravado na Mantiqueira e nutrido pela seiva de águas oníricas e curativas como paisagem inconsciente que há de colorir sutilmente cada um de seus passos.